Agricultura Kayapó/Mebengokré
Experiência na Terra Indígena Badjônkôre
– Aldeia Kranh-ãmpare
Ramon de Paula Neves – Indigenista
Especializado
1 – Introdução
A
idéia deste texto é descrever e
apresentar os elementos que caracterizam o modo de produção agrícola Kayapó/Mebengokré,
como a cultura e a produção agrícola influenciam no dia a dia dos diversos
sujeitos das comunidades, ademais de apresentar as experiências produtivas da
aldeia Kranh-ãmpare na TI Badjônkôre.
Os
Kayapó vivem em aldeias dispersas ao longo do curso dos afluentes do caudaloso
rio Xingu, desenhando no Brasil Central um território do tamanho da Austria
recoberto pela florestal equatorial, com exceção de algumas porções preenchidas
por áreas de cerrado. O termo Kayapó foi usado por grupos vizinhos para
denominá-los e significa “aqueles que se assemelham aos macacos”. Mesmo sabendo
que são assim chamados pelos outros, os Kayapó se referem a si próprios como
Mebengokré, “os homens do buraco/ lugar d’água” (POSEY, 1979).
Os
povos indígenas da etnia Kayapó possuem um histórico impressionante de proteção
de suas terras tradicionais contra a invasão e o desmatamento. Eles detêm um
território que se estende por quase 11 milhões de hectares no sudeste da
Amazônia e constituem o maior trecho contínuo de floresta tropical protegida do
mundo. Hoje as terras indígenas são, praticamente, a única barreira contra a
onda de desmatamento e incêndios que devastam o sudeste da Amazônia, onde a floresta
dá lugar à agricultura. Este efeito barreira ocorre porque os povos indígenas,
que dependem da floresta para sobrevivência, lutam ativamente pelos direitos
sobre suas terras e expansão de fronteiras. Os territórios dos índios Kayapó
nos estados do Pará e Mato Grosso são um exemplo impressionante da barreira contra
o desmatamento e representam uma oportunidade extraordinária para a conservação
numa ampla escala de paisagem. Tendo conseguido a demarcação da maior parte de
suas terras, os Kayapó do século 21 têm que defender 2 mil km de divisa contra
a usurpação e a invasão por fazendeiros, madeireiros, exploradores de ouro e
posseiros.
A
TI Badjônkôre surgiu da não contemplação
de um subgrupo quando da demarcação da TI Kayapó, mais especificamente, daquelas
provenientes do grupo Kubenkrankêng, para regularização das porções de terras
tradicionalmente por eles ocupadas e que estava fora dos limites da TI Kayapó.
Ocorre
que os índios da referida terra indígena jamais aceitaram, com tranqüilidade e
satisfação, os limites definidos, alegando não terem participado efetivamente
do procedimento de demarcação acima referido, realizada em 1985, pelo convênio
entre a FUNAI e a Divisão de Serviços Gerais do Exército Brasileiro, época que
tiveram início os conflitos fundiários entre os índios e os segmentos
regionais. Com isso nos fins dos anos 90 a TI Badjônkôre foi demarcada com mais
de 200mil hectares entre os municípios de São Felix do Xingu e Cumaru do Norte.
2 – Elementos culturais
2.1 - Cosmologia
Há um mundo celeste
do qual provém a humanidade. Os primeiros seres humanos que chegaram à Terra vieram de lá por uma
longa corda, como formigas por um tronco. Isto foi possível porque um homem viu
um tatu
e o seguiu até que entrou num buraco, que depois foi usado pelas pessoas para
vir a este mundo. Também as plantas celestes baixaram do mundo celestial quando
a filha da chuva brigou com a mãe, desceu a este mundo e foi acolhida por um
homem, a quem entregou as plantas.
Muitos relatos explicam os fatos
culturais, desde a obtenção do fogo até a casa da onça-pintada.
As danças são levadas muito a sério, pois explicam a relação com a natureza, a
sociedade e a história. Não usam bebidas fermentadas nem plantas alucinógenas.
2.2 – Agricultura Kayapó
Sua principal atividade econômica é
a agricultura itinerante praticada por
homens, mulheres e meninos. Através do método de desbravar e queimar
(queimada), cada par limpa um local na floresta de cerca de cinquenta por
trinta metros onde estabelecem seu puru, uma horta na qual semeiam batata, cará, mandioca, algodão, milho e, ao lado das
árvores, plantam cupá, uma videira com gavinhas
comestíveis. Alguns grupos introduziram em suas hortas arroz, feijão, mamão e tabaco.
Recolhem mel e frutos de palmeiras
silvestres como o babaçu. A castanha-do-pará, que anteriormente era
recolhida pelas mulheres para seu autoconsumo, hoje é recolhida pelos homens e
vendida a compradores estatais ou privados.
São bons caçadores, mas, atualmente,
a caça não é abundante. Os homens tecem cestos, cintos e faixas para carregar e
fabricam paus, lanças, arcos e flechas para a caça. As mulheres fabricam
pulseiras, fitas e cordas
São
especialmente as mulheres que produzem a quantidade necessária de alimentos
calóricos. As roças, cultivadas em um raio médio de quatro a seis quilômetros
da aldeia, são geridas por elas.
Os
Kayapó são exigentes na escolha de terras potencialmente férteis: o lugar ideal
é uma porção de floresta com uma vegetação não muito densa, não longe de um rio
e situada no pé de colinas. Os Kayapó fazem uma distinção entre diferentes
tipos de terrenos e de florestas. A escolha de um lugar conveniente para o
estabelecimento de uma nova aldeia ou de uma nova roça não se faz de modo
precipitado. Especialistas examinam cuidadosamente a terra, sua cor e sua
composição. A vegetação existente é igualmente tomada em consideração.
Os
homens têm a dura tarefa de cortar as árvores para a abertura das roças. As
árvores são derrubadas no início da estação seca (maio) e permanecem lá alguns
meses, até a proximidade da estação chuvosa. A natureza do solo constitui um
grande problema na floresta equatorial, pois este é extremamente pobre em
minerais. É por isso que perto do mês de outubro, os Kayapó queimam as árvores,
cuja madeira teve tempo o suficiente para secar. Os minerais nelas concentrados
permanecem nas cinzas, formando uma camada, que se presta de adubo. Depois da
queima, as mulheres dão início à semeadura. Muitas variedades de plantas são
semeadas em círculos concêntricos. Essa cultura mista apresenta um certo número
de vantagens; por exemplo, as plantas de folhas grandes protegem o solo de
chuvas torrenciais e do ressecamento, assim como outras plantas altas protegem
do sol causticante. Algumas plantações estão igualmente relacionadas com o
combate contra os insetos. Na periferia da roça, são comumente semeadas plantas
medicinais. Muitas dessas plantas produzem um néctar que atrai uma certa
espécie de formigas agressivas, inimigas naturais de insetos fitofágicos. Por
mais que pareça desordenada, a roça kayapó está organizada segundo uma lógica
extremamente estruturada.
As
mulheres vão todos os dias às roças para recolher legumes. A vida de uma mulher
kayapó é um tanto monótona. Mas algumas vezes por ano, geralmente durante a
estação seca, pequenos grupos de mulheres vão à floresta para juntar frutas
selvagens e óleo de palmeira. As excursões mais curtas duram dois dias, as mais
longas, uma semana. As mulheres nunca se separam de fato da aldeia,
permanecendo em um raio de cerca de 30 km ao redor dali, território com o qual
são mais familiarizadas e que é constantemente atravessado por caçadores.
O
antropólogo Darrel Posey, estudando os Kayapó,
mostrou a preocupação desse povo com a preservação da natureza, utilizando,
para isso, não só um planejamento rigoroso nas suas práticas agrícolas, como
também técnicas naturais altamente desenvolvidas, se comparadas à dependência
da sociedade envolvente aos defensivos químicos.
Os Kayapó, por exemplo, acreditam que existe
um equilíbrio entre os espíritos dos animais, dos homens e das plantas. Se os
homens abusarem dos recursos da floresta, a harmonia será destruída e chegarão
doenças para toda a tribo. Para eles, nenhum aspecto da vida tribal é mais
importante que o equilíbrio ecológico. [...]as roças possuem sempre cobertura
vegetal, o que impede a erosão do solo e a insolação excessiva. Dentro das
roças é grande a variedade de plantas e sua distribuição evita o aparecimento de
insetos e outras pragas. Outros conhecimento nativo sobre a agricultura é que o
plantio se faz de maneira a aproveitar ao máximo o solo, de acordo com as
plantas e as condições do terreno. Assim cada planta pode aproveitar melhor as
propriedades que lhe servem. As faixas de florestas conservadas entre as roças
servem ao mesmo tempo de "corredores naturais" prestando-se ao uso
como refúgio por plantas e animais, facilitando a reconstituição da fauna e da
flora. Isto denota planejamento e permite a conservação das reservas,
proporcionando que haja produção com aproveitamento máximo dos recursos e sem
dano ao meio. (Posey, 1984, p.45).
2.3 - Calendario
ecológico
Os
Kayapó iniciam o seu ano
no ngô ngrà (vazante) com atividades agrícolas que se estendem por quase
todo o calendário ecológico até a maturação do milho. Segue-se o período da
colheita e, com a queda dos frutos silvestres, os animais são atraídos,
propiciando a época de caça que coincide com o ngô TAM (cheia). Em
seguida, há um pequeno período de maior atividade de lazer e conveniência
familiar, ao fim do qual, com a queda do nível das águas do rio (vazante),
intensifica-se a atividade de pesca. E, com a vazante, inicia-se um novo ano. (TURNER,
1991)
O
início do ano é marcado pelo cerimonial bemp, que se estende durante
quatro luas: do surgimento do bemp nhõ djà - largas faixas coloridas que
partem o sol poente, até a ocorrência das primeiras chuvas. Ao final do
cerimonial bemp, pode-se ver no meio do céu, antes do sol nascer, o ngrôt
kryre, ou punhado de cinzas, formado pelo aglomerado de sete estrelas, as
Plêiades, situadas na constelação de Touro.
Diferentes
épocas do ano são acompanhadas da realização de metõro, cerimoniais de
caráter sazonal e de grande importância na vivência e na identidade social do
grupo. A divisão das tarefas segue o critério sexual, sem fugir à regra das
demais comunidades Kayapó, cabendo à mulher carregar os fardos, a lenha e transportar
os alimentos cultivados nos roçados para as casas.
3
– Descrição da Experiência da Aldeia Kranh-ãmpare
A
aldeia Kranh-ãmpare desenvolve, principalmente, o cultivo do milho e das
diversas espécies de batatas, além de lavouras de mandioca, banana, urucu,
abóbora, melancia, cará, arroz e algodão, plantadas em grupos e dispostas bem
ordenadas por quase dois quilômetros às margens de um pequeno curso d'água.
As
práticas agrícolas são rudimentares, atividades que incluem trabalhos simples
destituídos de técnica aparente. Os estudos desenvolvidos ultimamente nesse
sentido têm demonstrado o contrário. Além da derrubada da vegetação, queimada e
consequentemente o plantio, inúmeros outros cuidados são observados na
agricultura indígena.
São
inúmeros os exemplos de conhecimento ecológico das culturas indígenas que se
pode apontar, uma vez que cada grupo indígena possui seus costumes, que de um
modo ou de outro funcionam para preservar os recursos naturais.
O
Benjadjwyr (Chefe, cacique) Pangrá apresentou as áreas de agriculturas próximas
a aldeia. Ele estima a existência de cerca de 10 alqueires de área plantada por
todas as famílias (25 famílias).
Dentre
as principais dificuldades no manejo da agricultura, Pangrá coloca que os
idosos tem muita dificuldade de realizar sua tarefa , uma vez que o trabalho é
penoso e algumas roças distantes.
Com
o contato, os indígenas aprenderam e passaram a depender de ferramentas para a
agricultura, as principais utilizadas na comunidade são: facão, machado,
moto-serra, enxada, cavadeiras, etc.
Visando
diminuir a dependência da FUNAI, a comunidade possui sua própria maneira de
armazenar as sementes. Espécies como milho, arroz, abóbora, melancia feijão de
fava são armazenados nas casas de cada família em sacos de fibra e em um local
arejado. Como a FUNAI não possui recursos suficientes e devido as dificuldades
de acesso as comunidades, as sementes nunca chegam a tempo. No caso da aldeia
kranh-ãmpare não existe nenhuma dependência de sementes e a comunidade se
encontra em visível estado de segurança alimentar.
Possuem
três (3) fornos para a fabricação de farinha e pretendem com o tempo processar
cupuaçu, açaí e cacau para venderem nas feiras da região. Processam arroz
manualmente, entretanto dizem que o trabalho é muito penoso para as mulheres
(que são responsáveis por esse serviço) e a comunidade deseja adquirir uma
batedeira de arroz para facilitar os trabalhos.
A
aldeia kranh-ãmpare se encontra em uma região de transição de cerrado para a
floresta, por isso aproveitam da possibilidade de coletar frutos e plantas
destes dois tipos de biomas. Os indígenas costumam coletar açaí, pequi,
castanha, óleo de copaíba, cupuaçu, babaçu, andiroba, diversas variedades de
coquinhos, além da envira para confecção
de artesanatos, a exemplo de paneiros, cocares, palhas para a cobertura de suas
casas, lenha para abastecer as fogueiras familiares, e privilegiam a coleta do
mel e da cera de abelha.
As
proteínas são consumidas através da caça, da pesca e da criação de animais. Na
região se encontram animais como o porco do mato, anta, paca, jabuti, búfalo,
cotia, macaco e tatu, todos devidamente consumidos pelas famílias. A pesca é um
pouco mais dificultosa, pois o rio se encontra a 20km da comunidade e uma ou
duas vezes por semana as famílias vão até o rio pescar trairão, pacu, piranha,
piau, piabanha, pintado, etc.
A
partir do contato com a sociedade envolvente, os Kayapó passaram a adquirir noções de pecuária e a dominar
técnicas de manejo com o gado bovino. Com a introdução das atividades
criatórias, novas demandas foram surgindo em decorrência do trato com os
animais. Na Aldeia Kranh-ãmpare, há um índio-vaqueiro, que aprendeu as tarefas
com outro vaqueiro (“não-índio”) contratado para essa finalidade. Este
índio-vaqueiro conta com o auxílio de outros três índios-aprendizes de vaqueiro,
que desejam dominar as técnicas de manejo para poder substituí-lo quando for
necessário ou tratar do gado de outras aldeias, caso seja convocado pelas
lideranças. A comunidade possui algumas cabeças de gado nelore e búfalos, além
dos búfalos selvagens espalhados pela terra indígena que são caçados.
Mesmo
com toda essa disponibilidade de alimentos possui dependência de alimentos e
itens industrializados como pão, café, sal, açúcar, fumo, refrigerante,
isqueiro, etc. No geral, os recursos monetários obtidos por meio de programas
sociais (bolsa família, salário maternidade, aposentadoria, etc) é direcionado
a compra destes produtos.
4 - Referencias
POSEY,
Darrell A. Ethnoentomology of the
Gorotire Kayapo of Central Brazil. s.l. : Univ. of Georgia, 1979. 177 p.
(Dissertação de Mestrado)
----------
Os Kayapó e a natureza. Cência Hoje,
Rio de Janeiro,v.2, n.12, p. 34-41, 1984.
----------
. Manejo da floresta secundária,
capoeiras, campos e cerrados (Kayapó). In: RIBEIRO, Berta G., coord.
Etnobiologia. Petrópolis : Vozes, 1986. p. 173-88. (Suma Etnológica Brasileira,
1).
TURNER,
Terence S. Da cosmologia à história:
resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó. Cadernos de
Campo, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 68-85, 1991.
Área de arroz já colhida
Mulheres na agricultura
Benjadjwyr Pangrá
na área de mandioca
Menira a caminho da roça